Olá, leitores de Discworld!
Eis mais uma resenha fresquinha para vocês!
E a obra resenhada da vez é Pequenos Deuses, o 13º livro da série Discworld do saudoso autor Terry Pratchett!
A obra conta a desventura de Brutha, um noviço da igreja omniana, a qual é dedicada ao culto do único e grande deus: Om!
Contudo, por causa de sua fé, de sua capacidade incrível de memória e de sua natureza ingênua, ele acaba sendo o único crente que restou ao deus. E, para deixar a coisa ainda mais “triste” para Om, ao tentar se materializar no mundo, apenas consegue energia para criar o corpo de um humilde jabuti, ou melhor… de uma tortoise caolha! (sendo que o desejado talvez fosse um… touro!)
E não bastasse a trapalhada toda, Brutha acaba envolvido em uma conspiração que pode, e certamente irá, resultar em uma tremenda guerra santa, a qual está sendo preparada nas entranhas da Igreja e envolve tanto o discípulo quanto o próprio Om, ainda mais quando a frase “A Tartaruga se Move” começa a ser espalhada por aí. E essa confusão muda COMPLETAMENTE as vidas existencialistas de nossos queridos personagens.
E em determinado momento da trama, somos apresentados ao grande vilão da estória: Vorbis, o exquisidor da Quisição (sim, é assim mesmo que se escreve no livro, não é inquisitor e nem exterminador, e sim: exquisidor. E sim, é Quisição e não Inquisição.)!
Vorbis é um homem extremante temido, por sua capacidade de persuasão imensa e de sua total falta de emoções, ele capaz de mudar a mente de qualquer pessoa para pior, sem problema algum.
Ele é um personagem de mente corrompida, que não acredita na “A Tartaruga que se Move” e fará de tudo para eliminar qualquer um que pense em proferir/acreditar piamente em tal blasfêmia (pobrezinhos do Brutha e da tartaruga caolha em que Om se tornou!).
E como em cada obra da série Discworld, há algum tabu e/ou algum assunto polêmico a ser discutido nas entrelinhas, em Pequenos Deuses não poderia faltar tal discussão!
Nesta obra, Terry Pratchett (que Om o tenha!), fala de religião, mais especificamente, aborda questionamentos como: “porque as pessoas precisam se apegar á ela?” e “como pode afetar suas vidas?“.
Novamente, o autor nos traz uma série de questões éticas e morais a serem ruminadas, que vão para além da “simples” crença, indo até a concepção de que o conhecimento é a melhor arma contra o “desenvolução” e o “obscuro“.
Ou seja…
Com um estilo ricamente engraçado e irreverente, mais uma vez, Terry Pratchett parece ter conquistado a grande maioria de seus fãs, fazendo com que todos, sem querer, pleitassem sobre uma questão tão importante!
Já que, a jornada profética de Brutha e Om é, na realidade, um conflito bem denso entre fé, compaixão, força de vontade e tolerância, contra uma igreja opressiva, cruel, estagnada e incrivelmente corrupta.
E ao trabalhar bastante com referências a filósofos e religiões diversas, Pratchett, em sua maestria de misturar muito humor e ironia, faz com que o leitor fique frequentemente perdido nos próprios pensamentos e não pare de se questionar se, por exemplo, aquilo em que acredita é real e “vale a pena“, ou se é apenas mais uma ilusão e enganação. O autor nos oferece uma constante busca de respostas.
Bem…
Quanto ao Omnianismo, na obra, é uma religião inspirada na estrutura da Igreja Católica Medieval e, por isso, há constantes alusões às questões um tanto complicadas como as indulgências e a temida inquisição (contudo, é fácil reconhecer os dilemas abordados no livro, nos dias atuais. Basta acompanhar os noticiários e ver todos os problemas sérios que aparecem, devido à persistência do ser humano ao fanatismo e à intolerância!).
Talvez por isso, Vorbis seja um personagem tão aterrorizante!
Visto que, ele parte do princípio de que qualquer quantidade de dor e sangue é justificável na busca pela “Verdade“… Pela “Verdade” em que ELE acredita e que a ELE pertence!
Por isso, é possível reconhecê-lo, por exemplo, em todas as histórias de jovens terroristas que largam todos e fazem de tudo para se juntar a entidades, como o Estado Islâmico. Ou, mais recentemente, em famílias e comunidades apedrejando crianças por não seguirem aquilo em que acreditam, ou pior, por seguirem aquilo em que não acreditam!
Basicamente, Terry Pratchett, nos oferece Vorbis como um produto de uma estrutura violenta, autoritária e ignorante… Não é à toa que Brutha é o único fiel que restou a Om: por puro medo, crentes aterrorizados não creem mais no Deus, mas sim na instituição da Igreja de Discworld.
Aliás, não é qualquer surpresa que isso tenha acontecido, se considerarmos a irresponsabilidade com que Om sempre tratou sua Igreja durante todo o tempo! Algo que fica óbvio para o leitor, durante conversas do deus com Brutha, principalmente sobre os livros sagrados!
A propósito, tudo isso é, no mínimo, tristemente engraçado, se levarmos em conta que o autor deixa bem claro durante a série que: Deuses precisam de pessoas e pessoas precisam de deuses!
Afinal, de acordo com Pratchett, todo o universo de Discworld se fundamenta no poder das histórias, sendo que, se um relato, mito ou lenda é contado por tempo satisfatório (e há pessoas suficientes que acreditem nele), acaba se tornando realidade!
Que coisa, não?
E voltando à trama do enredo…
E, como sempre acontece, quando a repressão se torna demais, o povo se revolta e as sementes da revolução começam a surgir. E no livro, Pequenos Deuses, isso se traduz na na frase “A Tartaruga se Move“, conhecida também como doutrina De Cheloniam Mobile.
Sendo que um dos dogmas do Omnianismo, no qual a saga toda se baseia, está no fato de que o mundo não é uma esfera azul localizada no imenso espaço, mas sim, uma tartaruga de proporções cósmicas nadando entre as estrelas do universo, em cujo casco há quatro elefantes colossais, que sustentam em seus lombos, toda Discworld em uma forma plana, como se fosse um disco no formato de pizza!
E é nisso, nessa “verdade” que se fundamenta a revolução!
O que, claro, além de irônico é HILARIANTE, uma vez que, se pararmos para pensar, toda essa teoria, aparentemente, se fundamentou na famosa e polêmica frase de Galileu Galilei: Eppur si muove ou E pur si muove (que significa: “mas se movimenta” ou “no entanto, ela se move”), pronunciada depois que foi brigado a desmentir e renegar publicamente, no Tribunal da Inquisição, sua teoria de que a Terra era redonda!
Quanto ao livro…
Pequenos Deuses (título original: Small Gods) é o décimo terceiro volume da série Discworld e, após anos, a Editora Bertrand (pelo Grupo Editorial Record) trouxe esse outro exemplar da saga para o Brasil, com uma linda e engraçada capa, que faz jus ao enredo e combina com as demais da série publicadas aqui, além da tradução de qualidade feita por Alexandre Mandarino.
Aliás, a tradução era algo com me preocupava um pouco, assim como a maioria dos fãs, creio eu… Afinal, Pratchett e seus trocadilhos nem sempre são fáceis de se traduzir. Contudo, para minha felicidade, me deparei com um exemplar muito bem traduzido, salvo alguns errinhos aqui e ali (ou opções editoriais, não sei…) :
- O uso do masculino em relação a Grande A’Tuin: fundamentalmente, Grande A’Tuin não é uma tartaruga macho, mas uma fêmea, algo que óbvio para o leitor, quando se lê sobre o que acontece em A Luz Fantástica, segundo livro da série.
- Om, na verdade é um ‘tortoise’: ou seja, o deus não é uma tartaruga caolha, como é descrita no livro, mas um jabuti caolho! Fundamentalmente, tartarugas só aparecem em terra para colocar ovos e passam o resto da vida dentro d’água; enquanto que jabutis são exclusivamente terrestres, exatamente como Om. Além disso, Pratchett era um verdadeiro entendedor de biologia e, no texto original, ele diferencia Om como “tortoise’”, ao invés de “turtles” (tartarugas em inglês).
No entanto, esses são apenas detalhes! Nenhum destes errinhos (ou escolhas), interfere na leitura do enredo. São apenas adendos/curiosidades, que talvez os fãs de Pratchett tenham conhecimento ou se interessem em saber.
Voltando ao que interessa de fato…
A narrativa, novamente, fluida e dinâmica, o que torna difícil a tarefa de largar o livro ou tentar não terminar a leitura “em um tapa”.
O tempo todo vemos piadas e referências a situações cotidianas da nossa vida, sempre colocadas de um modo que se encaixa na trama. Porém, desta vez, o humor é um pouco mais contido do que aquele que encontramos nos volumes anteriores.
A sensação que dá, é que este é um livro “divisor” na evolução de escrita e estilo do autor. Visto que, em Pequenos Deuses, percebemos que Terry Pratchett começa a priorizar a crítica satírica à era contemporânea, ao invés das tradicionais piadas com as convenções encontradas no gênero de fantasia medieval, as quais são deixadas um pouco de lado, “amadurecendo” a obra.
Além disso, a crítica certeira e divertida a respeito de religiões, da fé cega e de suas consequências; se torna uma ótima pedida para quem gosta de exercitar os miolos.
Como de praxe, Pratchett faz presente o lado trágico do enredo e não zomba tanto da crença em si, mas principalmente de como a religião organizada ás vezes se aproveita da fé para benefício próprio.
Ao meu ver, está é uma narrativa excelente, recheada de piadas surpreendentemente inteligentes e observações divertidas! E se, por acaso, o livro lhe ofendeu, se sentiu atacado pelo autor de alguma forma ou, simplesmente, não conseguiu entender muita coisa e achou o enredo louco e sem sentido algum… Ao menos, três coisas você pode levar consigo:
- Isto Não É Um Jogo.
- Aqui e Agora, Você Está Vivo.
- Terry Pratchett pode ser insanamente genial.
…
Texto by Fabi